segunda-feira, junho 04, 2007

Storytelling - Quarto Mingoante

Comecei a escrever esta história há alguns meses... baseei-me a início num conto malaio (da malásia) que li algures numa revista... infelizmente não guardei o texto na altura, e já não tenho esse conto, nem o consegui encontrar em lado algum =/ o conto falava sobre as pessoas a engordarem e a emagrecerem conforme a Lua.. durante a Lua cheia era quando comiam mais, e na Lua nova era quando não comiam..entre essas fases iam progressivamente comendo mais ou menos.
No início pensei basear-me nesse conto para experimentar escrever o meu primeiro conto infantil...acerca da morte, visto que é um tema delicado para a infância. no entanto não fui capaz. Não consegui escrever com linguagem dirigida a crianças, e eventualmente acabei por me deixar divagar através de questões de existêncialismo espiritual, associadas a estados que na vida corrente seriam associados a esquizofrenia e delírios psicologicos.
Ainda assim, fica marcada como a primeira narrativa um pouco mais longa, que consegui acabar =) tenho outras que comecei a escrever (uma delas já em fevereiro de 2004..) mas infelizmente vão ficando pendentes até que algum dia me sinta capaz de continuar, com as palavras certas.
Por agora aqui está este =)



------------------------------------------------------------------------------------
------------------------------------------------------------------------------------
------------------------------------------------------------------------------------

Quarto Mingoante

Tiago Ribeiro
Junho, 2007

------------------------------------------------------------------------------------
------------------------------------------------------------------------------------

Com a barriga cheia, o pequeno Mingo só queria sair da mesa, e ir brincar com os seus amigos. Mas a mãe insistia sempre no mesmo:
- “O Buri e o Luno também estão ainda a jantar!”
Revoltado, não perdia a gula de correr lá para fora, onde a Lua cheia brilhava.
- “Estes jantares são sempre uma seca.” – lamentava ele. Com o seu corpo pequeno, não precisava de comer muito para ficar cheio, ao contrário dos seus familiares mais velhos, que jantavam geralmente durante duas horas, nestas noites de lua cheia.
- “Aqui vem a sobremesa!” – exclamou sua mãe. – “Espero que esteja mais saborosa do que no mês passado.” – mais vinte minutos, e estava livre da mesa.

No céu, a Lua parecia falar com ele. Parecia perguntar - “Então, como foi o teu jantar? O meu foi bom, vê como estou tão cheia!” – Mas apenas os grilos quebravam o silêncio.
- “É sempre assim.” – respondera-lhe um dia o pai. – “Desde os tempos ancestrais que vivemos com a Lua lá do alto, é ela a carta de Malá, que nos diz a que ritmo viver.” – Questionando-se acerca do porquê destes enormes jantares que se repetiam em casa lua cheia, resolvera um dia esclarecer esta questão junto do pai.

Não tardou muito até aparecer o Buri, que se queixou do mesmo:
- “Será que somos os únicos que não gostam destes jantares?” – Sentados sob uma macieira, conversavam sobre Luno, o cão de Mingo, e sobre a forma estranha como ele andava, depois de tanto comer nestas noites. A certa altura, uma leve rajada de vento fez a macieira abanar - Luno desequilibrou-se e caiu ao mesmo tempo que uma maçã aterrou junto aos pés de Mingo.
- “Tivesse esta maçã caído há duas horas atrás e eu devorá-la-ia num instante... mas neste momento, por mais que o meu pai me tenha dito que são as maças trazidas pelo vento, as melhores e mais suculentas, não tenho lugar nenhum para ela no estômago. Pegando na maçã, perguntou a Buri – “Queres?” – “Sinto o mesmo que tu... deixa-a aí, decerto alguém a há-de comer, nem que sejamos nós próprios, amanhã ou depois.”
Pousando a maçã delicadamente sobre uma rocha prostrada sob a árvore-mãe, Mingo acrescentou – “Acho que são horas de ir indo... e a Lua está-se a esconder, parece-me que vem aí chuva.” – Até amanha então.” – e seguiu cada um para sua casa.

No dia seguinte, a chuva cobriu a terra e o céu, não deixando Mingo sair de casa. Junto à janela, este espreitava uma claridade por entre algumas nuvens, onde o Sol tentava surgir.
- “Sol, porque não vives como nós? Porque não engordas e emagreces como a Lua?” – Mas o Sol continuou calado de nuvens.

Após uma semana seguida de chuva, sem Sol nem Lua, o céu clareou de novo azul e Mingo pôde ir correr lá para fora.
- “Bestial, vou poder comer a bela maçã que o vento colheu na semana passada.”
Chamando Luno, despachou-se em direcção à velha árvore, onde uma desagradável surpresa o aguardava.
- “Árvore, que fizeste à tua deliciosa fruta?” – Mas a árvore permaneceu calada, debruçada sobre a rocha como alguém que triste, chora folhas por um filho que perdeu.
- “Se não foste tu, então quem foi? A rocha não se mexe, não poderia ter sido ela... Vou levar a maçã ao meu pai. Talvez ele possa descobrir.”
Pegando com cuidado na maçã, dirigiu-se para casa, onde o pai lia um jornal, sentado numa cadeira de jardim.
- “Pai, quem fez isto à maçã? Há uma semana ela caiu-me aos pés, e agora está assim” – perguntou Mingo. – “Não foi ninguém. Foi apenas o passar do tempo.” – “Como é que o tempo faz isto?” – De olhos esbugalhados, esperou a resposta sábia do pai, enquanto este enrolava o jornal. – “Meu filho... essa maçã morreu... há coisas que morrem com o tempo, principalmente se não cuidamos delas. A maçã ficou a apanhar chuva e frio, ficou doente, apodreceu... e agora está morta.” – Fitando a maçã, Mingo perguntou ainda – “Ela não volta a engordar e a colorir, como a Lua faz sempre?” – “Não, o tempo espremeu o seu sumo, que se evaporou para sempre no céu.”

Sentado sob a macieira, Mingo juntava algumas pedras, desenhando com elas uma maçã no chão, quando Luno surgiu a correr, seguido de Buri.
- “O meu pai disse-me que ela morreu.”
-“O quê?” – questionou Buri.
- “A maçã. Morreu.” – “Como?”
- “Segundo o meu pai, ficou abandonada à chuva e ao vento, e o tempo espremeu-lhe o sumo.”
As duas crianças ficaram alguns minutos a fitar a maçã de pedras, enquanto Luno esfregava o chão, até que Buri questionou – “Achas que também morremos, se ficarmos à chuva e ao vento?” - Uma rajada de vento começou por responder, mas Mingo adicionou – “Penso que não. Nunca ouvi falar de alguém que tenha morrido. Nem mesmo os meus avós mais velhos, a quem o tempo mais passou... Nós vivemos com a Lua, ao seu ritmo. Se a Lua nunca morre, nós também não.” – “Porque as maçãs não fazem o mesmo?” – “Talvez não o saibam...” – “É injusto.” – retorquiu Buri. – “Vamos esclarecer com o meu pai.”
Chamando Luno, correram de volta à casa de Mingo, deixando sob a árvore um frígido e imóvel desenho de quem outrora nasceu e morreu ali.
- “Pai, pai! Onde estás?”
- “Estou no quintal, Mingo. Porquê tanta exaltação?”
- “Pai... Porque somos mais especiais do que as maçãs?” Não são elas vivas também? Não é injusto que elas morram com o tempo, quando isso não nos acontece?”
- “Mingo, Mingo... Ainda à volta das maçãs... Sempre à volta de perguntas que mais ninguém faz. Não te sei responder a isso, mas sei quem pode.” – Os olhos de ambos os pequenos encheram-se de brilho, e até Luno se sentou, fitando o velho dono. – “Quem?” – um uníssono de surpresa. – “Apenas o nosso deus, Malá, te sabe responder a tal. Foi ele que criou o mundo onde vivemos, e é ele que mantém o equilíbrio da vida. Podem encontrá-lo em oração, no velho templo ao cimo da Colina do Vento.”
Respondendo com um chiar de sapatos, dirigiram-se à colina. Ao fundo do jardim que antecipava o templo, já o velho sacerdote Horbu os esperava.
- “Horbu! Como sabias que vínhamos? Foi Malá que te avisou?”
Em gargalhadas respondeu – “Não, meus filhos! Malá diz-me muito, mas não é a minha campainha de visitas... Estava na torre a limpar os sinos, quando vos vi a dirigirem-se para aqui a correr... o que vos traz cá em tal desfôlego?”
- “Vínhamos falar com Malá! Queríamos saber... “ – “As vossas perguntas são para ele, pois a essas apenas ele pode responder. Sigam-me.”
O templo apresentava-se no seu aspecto habitual – frio e pouco iluminado, respirando o que parecia ser uma mistura sóbria de flores com algum queimador de arôma sábio.
- “Para falar com Malá, precisam de elevar um pouco o vosso espírito. De forma relaxada, limpam a mente, tornando-vos conscientes da vossa existência para além do corpo... Quando conseguirem isso, ele saudar-vos-à.”
Uma missão que parecia tão simples, ditada pela voz segura de Horbu revelou-se bastante mais complicada, com Luno sempre a passear e farejar por todo o lado, desconcentrando-os.
- “Mingo, já ouviste alguma coisa?” – “Além do Luno a fazer barulho?” – “Vou brincar com ele lá para fora.”
Finalmente Mingo ouviu o silêncio aproximar-se, enquanto os passos de Buri e Luno se afastavam, até desaparecerem por completo, ao som pesado da porta a fechar.
- “Agora nós...” – Sentado em oração, Mingo focou-se na própria mente, pensando para si próprio como seria estar consciente da sua própria existência para além do seu corpo. Sentindo-se como se as pernas e braços estivessem a adormecer, perguntou à sua própria mente – “Malá? É aqui que falo contigo? Onde te encontro?”
Em poucos segundos obteve resposta – a sua mente brilhou de branco, como se a visse, mesmo de olhos fechados. E foi então que uma voz calma e profunda o envolveu:
- “Mingo! Sê bem-vindo.. Vem... Entra.”
Logo o branco da sua mente se transformou em cor, e embora não sentisse as mãos, os pés, ou outra parte do corpo, sentia-se a flutuar, nalgum lugar para além do seu corpo. Em sua volta um azul agitava-se de ondas que pareciam uma mistura entre um mar tormentado e um céu de nuvens ventosas, de um pôr-de-Sol laranja.
- “Mingo...” – A voz parecia vir de trás de si, e sem mexer um músculo, voltou-se imediatamente. Diante de si estava Malá, o espírito que regulava todo o mundo que ele conhecia. Via-o na forma de uma luz, não pontual, mas nebulosa, brilhante, que se revolvia lentamente, entre branco e lilás.
- “O que te traz a este lugar tão sábio, que poucos o conhecem?”
- “Malá... Vim porque fiz uma pergunta ao meu pai, e ele não me soube responder.”
- “Que pergunta tão persistente foi essa, então?”
- “Descobri que as maçãs e outras coisas vivas morrem com o passar do tempo... E nós não. É porque somos especiais, ou apenas porque nos alimentamos com a Lua?”
- “Meu caro Mingo... A tua dúvida é de um conhecimento que jamais alguém no mundo teve... Somos especiais, sim, porque somos eternos. Mas não somos eternos por sermos especiais.”
- “Nós?” – persiste Mingo. – “Mas estava a falar de mim... do meu pai... do Buri e de toda a minha família. Tu és eterno, porque és um espírito, e vives num mundo ao lado do nosso.”
- “Nem tudo o que dizes está certo... Eu sou tu e toda a gente que conheces... Eu sou o espírito que é toda a gente... E partilho o teu mundo, na forma física. Mas eu não vivo, apenas existo – existo no teu mundo como aquilo que é a vida, pois para mim, não há tempo, não há horas nem segundos. Para mim o tempo não passa. E tu és especial, pois consegues ver-me no teu mundo. Por isso ninguém morre, excepto aqueles que não tenham um espírito que faça parte de mim... de nós. Por isso pensas que todos são eternos.”
Em silêncio, Mingo não conseguia compreender. – “Não percebo... dizes-me então que as pessoas não são eternas? Então como as vejo sempre?”
- “As pessoas são eternas, pelo menos em espírito... Porque és especial, consegues vê-las assim, como mais ninguém consegue. Mas como és especial, não consegues vê-las a entrar e sair do teu mundo.”
- “Como é que elas fazem isso?”
- “Chama-se nascer e morrer...”
- “O meu pai falou-me acerca de morrer... quando encontrei a maçã que morreu. Significa que as pessoas também morrem? Eu também morrerei um dia?”
- “Nenhum de nós realmente morre... apenas o corpo nasce, envelhece, e morre, tal como aconteceu à maçã. Nós, na realidade, existimos eternamente e amadurecemos... vamos conhecendo cada vez mais à medida que vivemos a vida de um corpo. Há espíritos mais antigos do que outros, e geralmente têm mais conhecimento, porque já viveram mais vidas humanas. Tu és um deles.”
- “Mas sou apenas uma criança!”
- “Um corpo de criança... é assim que a tua mente te vê. Tens um espírito mais claro, puro, iluminado. Estás mais perto do início... Estás mais perto do conhecimento... por isso te vês como uma criança.”
- “Mas... e o meu pai, que me ensina tanto? E os meus avós mais velhos, que apenas se preocupam em ter o jantar pronto, nas noites de lua cheia?”
- “São eles os espíritos mais novos... por isso não pensam neles, nem no mundo. Por isso se limitam a observar a fase da Lua, e não a sua verdadeira luz. Pensam em comer, e em não muito mais... Por isso eles são tantos, e apenas Buri e tu são crianças. O teu pai ensina-se porque ele também aprendeu já coisas e tu, apesar de seres mais antigo, continuas a ter sempre algo para aprender... No entanto sabes melhor do que alguém como viver e sorrir – sabes brincar, apreciar a Lua como ela é, observar as árvores e falar com a Natureza... Esse sim é o verdadeiro conhecimento.”
- “Achas que algum dia vou aprender a ver a morte?”
- “Acho que já aprendeste, Mingo... Volta quando quiseres... Agora sabes como me encontrar.”
O sino do templo apagou Malá, e em doze badaladas as cores escureceram, e Mingo começou a sentir o suor nas mãos e a pedra fria do chão a magoar os seus joelhos. Um leve tiquetaque ecoou do fundo do templo e logo surgiu a figura de Horbu, que se sentou nas escadas, vindo da torre.
- “Não estás a conseguir? Vi Buri e Luno a saírem do templo uns segundos antes de eu começar as doze badaladas do sino. Peço-te desculpa por ter perturbado a concentração, mas gosto de ser pontual. O próximo sino toca apenas daqui a uma hora, por isso tens tempo para conseguir.”
- “Que dizes tu?” – perguntou, admirado, Mingo. Uma expressão de não menos surpresa apoderou-se da cara de Horbu. – “Desculpa? Mas não ouviste nada do que eu disse?” – “Ouvi tudo, mas não fez sentido... Encontrei Malá, ele respondeu-m a tudo e ouvi todas as badaladas, enquanto... vinha embora...”
Gaguejando, Horbu levantou-se atrapalhado – “Mas... foi mesmo? Buri saiu daqui há menos de um minuto...” – “Estive com Malá durante muito mais tempo do que isso” – “Mas tens a certeza da noção do tempo?” – A resposta brilhou nas palavras de Malá, que Mingo guardou na memória. – “Onde eu estive o tempo não passa... Ele não existe lá, sequer.”
Com toda a calma, levantou-se e dirigiu-se ao exterior, deixando Horbu petrificado de incompreensão.
- “Mingo! Então, já desististe?” – exclamou Buri, aparecendo do jardim à direita. Hesitando por uns instantes, observou Buri, e depois Luno, enquanto este perseguia borboletas pelo meio dos arbustos.
- “Sim, Buri... é bastante difícil concentrar-me assim, ainda mais num lugar frio como o tempo.”
- “Mas os teus olhos falam com uma luz que nunca antes vi em ti...” – Fitando de novo Buri, recordou as palavras de Malá – “Por isso eles são tantos, e apenas Buri e tu são crianças.” – “Tens razão, Buri... Eu vi algo. Sei que tu sabes que vi, pois sabes mais do que os outros, e sei que um dia o verás também, mas ainda não consegues compreender. Até amanha, Buri. Depois diz ao Luno para vir para casa.”
Durante o resto do dia, Mingo andou a trepar a várias árvores. Algumas tinham frutos, outras não. Havia até uma com folhas vermelhas, em vez de verdes. Mas em todas elas sentiu que a conhecia e que a conseguia ver, sem ser propriamente com os olhos.
Chegada a noite, conversou um pouco com a Lua, e pouco depois voltou para casa, onde adormeceu a pensar em tudo o que tinha aprendido.

Pela manhã, os sinos despertaram-no, e permaneceu uns segundos a ouvir o seu badalar.
- “O dia de ontem parece tão distante...” – pensou para si próprio.
Saído da cama, vestiu-se e passou pela cozinha, onde a mãe arrumava alguma tralha.
- “Mãe, vou ter com o Buri. O Luno anda por aqui?”
- “Oh filho, mas será que nunca vais arranjar um amigo a sério?”
- “Um amigo a sério?” – A pergunta apanhou-o com uma surpresa que nem Malá seria capaz de provocar. – “Estás a falar do Buri? Qual o problema do Buri?” – “Estou a falar de arranjares um amigo que consigamos ver! Estás doidinho, tu, sempre com esse teu amigo imaginário na cabeça, a correr atrás do cão que morreu há já dez anos. Nem sei como te lembras ainda do cachorro!”
Um eco na sua cabeça sentiu como um conhecimento adquirido por Malá. – “Pois, mãe... vou tentar encontrar um amigo a sério... Logo trato disso.” – “Faz isso, filho, por amor de Malá!”
À porta, Luno estava ainda a dormir. Mingo dirigiu-se à macieira, onde encontrou Buri.
- “A minha mãe disse que não existes, que és um amigo imaginário. Mas sei que existes, porque Malá falou de ti. Só não sei o que aconteceu, porque ela também disse que Luno morreu há dez anos e ei-lo ainda agora aqui a chegar, numa corrida tão cheia de vida. Mas acho que só pode ter a ver com o que Malá me disse ontem.”
- “Hahaha... Finalmente aconteceu. Encontraste finalmente Malá?” – respondeu Buri sem espanto, emoção essa que passou directamente à cara de Mingo. – “O quê? Mas tu sabes? Como?” – “Eu não sou invisível, Mingo... A tua mãe é que não sabe. Tu próprio não foste capaz de saber realmente quem sou, até hoje.”
- “Não estou a perceber...” – A cara de Mingo habituara-se já a confusão e espanto, e aguardava agora uma resposta do surpreendentemente sábio Buri.”
- “Olha para ti, Mingo...”
Levantando as mãos, encontrou uns membros magros e ossudos, pálidos, riscados de veias e rugas, pontilhadas por algum pêlo branco que lhes chegava vindo dos braços. Olhando para o seu corpo viu trapos antigos e alguns adereços que sempre associara aos seus avós mais antigos. Em pânico, levantou-se e com as suas velhas pernas, correu durante alguns segundos, até chegar a um riacho que passava ali perto.
O reflexo do seu olhar na água não o enganou e logo teve a certeza de estar a olhar para os mesmos olhos iluminados pela luz que Buri tinha referido no dia anterior.
- “Estas morto, Mingo.” – Buri aparecera subitamente à sua frente, na outra margem. Apresentava um aspecto tão antigo quanto o seu, e um cabelo escasso e branco caia-lhe sobre os ombros, contornando uma cara de quem já aprendeu muito, em mais do que muitas vidas. – “Eu também. Luno também. A tua mãe ainda conheceu Luno, mas a mim não. Ela sempre pensou que eras maluco, por falares comigo e passares o teu tempo comigo. Na realidade sempre foste especial. Eu sempre te vi como te estás a ver agora... Nunca te vi a morrer, porque aprendi isso, quando encontrei Malá. Apenas te via a mudar de casa, de tempos a tempos e sabia porquê. Tu, pelo contrário, seguiste um caminho diferente... vias quem estava morto, sem veres a morte, antes de encontrares Malá. Na realidade sempre viste melhor do que eu, pois sempre viste a realidade – nós somos realmente eternos, como aprendi um dia. Apenas passaste as últimas vidas a ver de forma diferente de todos os outros... Malá disse-me que eras mais antigo do que eu. Uma vida. Foi aí que percebi tudo. Percebi que todos te viam como maluco, quando eras sábio. E percebi que nunca te viste como maluco, porque nunca o foste.”
Mingo permaneceu calado durante algum tempo. Tanta novidade demorava a ser ingerida. Tanta novidade... tantas ilusões desfeitas.
- “Vamos até à árvore?” – propôs Buri. – “Sim.”
Ao chegar, Mingo observou uma criança a brincar sob a macieira. Familiar, era, ainda assim, alguém que ele próprio nunca tinha visto diante de si. Sozinha, a criança atirava um pau para longe, observando como quem espera que o pau volte sozinho a algum instante. A dado momento, Mingo achou que tinha percebido a pronunciação de “Buri” nos seus lábios.
- “Sou eu, não sou?”
- “É o teu corpo.”
- “E eu, quem sou?”
- “És tu.”
- “Quem é ele?”
- “Alguém que um dia será capaz de nos ver, e que nessa altura, verá outros como ele.”
- “Mas porque ele não consegue saber tudo o que sei? Porque não sabe que morreste, e que o Luno já não busca como antes?”
- “No fundo ele sabe quase tudo o que tu sabes, mas o corpo distorce um pouco a tua existência no seu espírito. Mas no fundo... lá mesmo no fundo, estás tu. No fundo, ele é sábio. Sabe viver, brincar e apreciar a Natureza como mais ninguém. Por isso me vê a mim e ao Luno. E por isso é uma criança.”
- “Como te pode ver, ao mesmo tempo que estás aqui? Como posso estar nele, ao mesmo tempo que estou aqui?”
- “Tempo? O que é isso para nós?...”

1 Comments:

At 6:44 da tarde, Blogger snowflake. said...

Este comentário foi removido por um gestor do blogue.

 

Enviar um comentário

<< Home